João e o Mapa da Autoliderança
O vento cortante da noite varria as ruas escuras da cidade. Encolhido sob um pedaço de papelão encostado a um muro, João sentia o frio atravessar sua pele como uma lâmina fina. Não se importava mais. Havia se tornado apenas mais um vulto perdido na multidão de esquecidos.
Antes, sua vida era diferente. Tinha um lar, uma família, um trabalho. Mas o acidente de ônibus levou tudo. Sua esposa, sua filha, e junto delas, qualquer razão para continuar. Primeiro perdeu a vontade de se levantar. Depois, perdeu a casa. E, por fim, perdeu a própria identidade. Tornou-se um espectro errante, sobrevivendo por inércia.
Naquela noite, entre um pensamento e outro sobre desistir, uma voz rompeu o silêncio.
— Aqui, amigo. Pegue. — Uma mão estendeu-lhe uma marmita quente e um casaco. João ergueu os olhos. Um homem de olhar sereno o observava.
João hesitou. Aceitou a comida, mas não disse nada. Sentia-se invisível tempo demais para lembrar como responder a gestos de bondade.
— Meu nome é Ricardo — continuou o homem. — Quero te fazer um convite.
João riu, amargo.
— Convite? Para quê? — A voz saiu rouca.
— Para uma jornada. Algo que pode te ajudar a sair desse buraco.
Uma jornada? Que ideia ridícula. Mas havia algo na forma como Ricardo falava que não soava como promessa vazia. Talvez fosse o cansaço ou o simples fato de que nada pior podia acontecer. Pela primeira vez em muito tempo, João levantou-se por vontade própria e seguiu aquele estranho.
O lugar onde Ricardo o levou era simples, um espaço pequeno onde um grupo de pessoas ouvia atentamente. No centro, um quadro com rabiscos confusos e uma palavra escrita em letras grandes: MAPA.
— Autoliderança — explicou Ricardo. — Isso aqui é um mapa para se reencontrar.
João cruzou os braços, desconfiado. No entanto, conforme a noite avançava, ouviu histórias de outros que estiveram no fundo do poço e encontraram uma forma de subir.
— Mas como? Como vocês saíram disso? — perguntou, incapaz de esconder o cético interesse.
Ricardo sorriu e estendeu-lhe um pequeno pacote.
— Comece por aqui.
João abriu. Dentro, havia uma porção de paçocas.
— O que é isso? Uma piada?
— Venda-as. Multiplique o que conseguir. Isso não é sobre dinheiro. É sobre retomar o controle. Dê um primeiro passo. Depois, dê outro.
João olhou para o pequeno pacote como se fosse um enigma. Aquilo parecia estúpido. Mas algo dentro dele, algo que há muito tempo estava apagado, acendeu-se de leve. Pegou as paçocas e saiu.
No dia seguinte, sentiu a vergonha que não sentia havia anos. Estava de pé, segurando as paçocas, tentando oferecê-las sem que sua voz falhasse. As pessoas passavam por ele sem ver. Mas, então, uma senhora parou.
— Quanto custa, rapaz?
Rapaz. Alguém o chamava assim depois de tanto tempo. Ele pigarreou e respondeu.
— Dois reais.
Ela comprou. Depois, mais uma. E outra. No fim do dia, as paçocas haviam desaparecido e, em suas mãos, algumas notas amassadas comprovavam que era real.
Quando voltou para encontrar Ricardo, algo havia mudado. Ricardo não precisou perguntar. Apenas sorriu e apontou para o quadro com o mapa.
— Agora, podemos começar.
João nunca mais voltou para a rua. A jornada estava apenas começando, mas, pela primeira vez, ele tinha direção.
Os dias seguiram um ritmo diferente. João agora vendia mais do que paçocas; vendia confiança. Cada moeda acumulada significava um tijolo em sua reconstrução. Pouco a pouco, ele compreendeu que não bastava apenas vender; precisava aprender a planejar.
Ricardo, sempre observador, percebeu sua evolução e o levou a um novo desafio.
— Está na hora de pensar maior — disse, entregando a João um caderno em branco. — Escreva o que você quer construir.
O papel vazio o intimidava. No início, apenas rabiscos soltos. Mas logo, palavras começaram a tomar forma. "Negócio próprio", "vida digna", "ajudar outros". Ele não sabia como faria tudo aquilo, mas já não era apenas um sonho distante.
Duas semanas depois, Ricardo o levou a uma padaria. O dono, um homem de meia-idade com um avental manchado de farinha, cruzou os braços e observou João.
— Então, você quer uma chance? O que pode me oferecer?
João engoliu em seco, mas não recuou. Contou sua história, sua recente jornada e como desejava dar um passo adiante. O homem o escutou com atenção e, por fim, acenou.
— Comece amanhã. Preciso de alguém confiável para me ajudar na entrega de pães.
João saiu dali sem saber se sorria ou chorava. Pela primeira vez em anos, tinha um trabalho de verdade. Olhou para Ricardo, que apenas deu um tapa amigável em seu ombro.
— O mapa está funcionando, não está?
Os meses passaram. João não apenas trabalhava na padaria, mas começava a poupar. Aos poucos, juntou o suficiente para alugar um pequeno quarto. Não era grande, mas era um lar. Algo seu.
Um ano depois, ele voltou ao mesmo ponto onde tudo começara. A noite fria era a mesma, mas ele, não. Sentado no chão, um homem encolhido se protegia do vento.
João tirou o casaco e o estendeu.
— Aqui, amigo. Pegue.
O homem hesitou, assim como ele havia hesitado antes. João sorriu.
— Quero te fazer um convite.
E, ali, um novo mapa começava a ser desenhado...
Marcio Cerbella
Enviado por Marcio Cerbella em 02/03/2025